quinta-feira, 22 de agosto de 2013

De repente

De repente o passado
De repente uma operação 
de coração aberto
como um livro 
que nunca quisemos terminar de ler

De repente a dor
esquecida

o aguilhão em brasa
que pensávamos arrefecido

De repente tudo 
o que críamos já nada

* escrito para o quadro de Oleg Dozortzev e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Seguinte

O dia seguinte
traz o travo amargo 
do que foi e já não é

O dia seguinte 
traz o cheiro acre
das sombras

O dia seguinte
traz o pavor amaro
de que a história não mude
nas próximas páginas

* escrito para o quadro de Luong Dung e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Dúvidas

Qual de nós o positivo?
Qual de nós o negativo?
Qual de nós a força motriz

para o florir das primaveras
para o fluir das águas
para o cair das neves?

Qual de nós o passado? 
Qual de nós o futuro?
Qual de nós a tela pintada

e qual o livro?
Qual de nós importa?

* escrito para o quadro de Melissa Peck e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Gelada

Agarra-me nas mãos geladas
esconde-as
no calor ilusório dos teus sonhos

Preciso ser tua antes
que expluda em mil
pedacinhos sem pertença

Antes que estilhasse
o que resta
das desilusões

* escrito para o quadro de Frédéric Rébéna e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Poeiras

O tempo passa 
e as estrelas explodem
palavras enrolam-se nas treliças
das tuas pernas 
e fazem sombra aos dias
há sonhos que crescem
amadurecem
e definham até à poeira vaga
dos ossos

E ainda assim chamamos-lhe
amor
 
* escrito para o quadro de Lucien Mandosse e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Inclinações

Inclina-te sobre o passado
há gaivotas na terra que se escondem
debaixo das tuas unhas
há resquícios de sol
nas sombras
e ouve-se ao longe o rumor
do mar batido no molhe

Inclina-te sobre o que resta 
dos dias
em que os dias ainda não tinham passado

* escrito para o quadro de Leonard Everett Fisher e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

A luz e o caos

Na história da minha vida
há mais sombras que luz
mais buracos negros
que supernovas

ainda assim sempre se sorri
na escuridão
e se encontra a graça
no caos 

* escrito para o quadro de Paul Huet e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Amor-ódio

Desfolho-te sem pressa
roço-me nas tuas páginas imperfeitas

inspiro-te o cheiro a passado 
recheado de amores que não eu

Hei-de odiar-te um dia 
como te amo hoje

* escrito para o quadro de Émile Berchmans e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Dualidade

No velho sotão
sou só eu e a memória dos livros que li
presa num filme mau de tevê

No velho sotão
suspenso entre as nuvens do que me lembro
e do que o tempo me fará esquecer

* escrito para o quadro de Michael Vincent Manalo e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Dizer

O cantar dos pardais
são os teus poemas, poeta
que os distingo no seu piar

Como os reconheceria
debaixo de água
nas bolhas respiradas
pelos peixes


Tal qual os digo quando uivo
loba ferida
à lua 

* escrito para o quadro de Pascal Blanchet e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Uma manhã

Uma manhã em Novembro
e partirei

sem medo de nunca chegar
a lado algum
que a viagem tem prazer no caminho 
mais que na meta
e sempre gostei de prazeres assim
rascunhados nos dias de chuva
em que os silêncios ecoam tonitruantes
cá dentro


* escrito para o quadro de Quint Buchholz e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Aos pés de Carmel

Podia ter-se sentado
noutro sítio
o livro não se queixaria do frio

mas não há nada como a proximidade de um aquecedor


* escrito para o quadro de Jon Falkenmire e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 


A verdade

Os olhos dela dizem que há
poesia na dor. 

Mas durante a dor não se adivinha
a verdade.


* escrito para o quadro de Nouréddine Zekara e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

O gato

Releio Pina
- e,

apesar dela não ladrar,
sei que há um gato que se passeia
a meu lado
num passo inconstante
que ecoa saudade
e poesia

* escrito para o quadro de Escha van den Bogerd e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Previsão

A planta há-de crescer
e há-de morrer
e os dias hão-de ficar parados
e as noites estupidamente longas

e as memórias parecerão um livro antigo
lido na infância
quando as plantas eram o milagre
das mãos verdes da mãe

* escrito para o quadro de Lucie Vézina e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Vinha nova

Vens de escantilhão
pelos silêncios abaixo
e entras de roldão
pelas palavras acima

e há precipitação na forma
como usas o bacelo

Não sabes o quanto demora a formar
a vinha nova?

* escrito para o quadro de Jean-Louis Brunati e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Sementes

Sento-me à tua sombra
e aguardo os frutos

uns que hei-de comer com ânsia

outros que hão-de ficar
caídos
a apodrecer na página que os viu nascer

ou a deitar semente

* escrito para o quadro de Toni Demuro e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.
 

Promessas

Quando eu não puder
vais ler para mim

prometes?

Quando eu não puder
serás os meus olhos

a minha voz interior

a ponta dos meus dedos

no papel

seguindo as linhas

até ao meu fim


* escrito para o quadro de Nguyen Thanh Binh e publicado primeiro
na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A musa

Copiaste-me linha por linha
Transcreveste-me sem pudor
sílaba a sílaba, vírgulas e tudo

Fizeste de mim triste
e musa e muda
e personagem de romancete
com deve e haver 
de mão em mão

Um dia esquecido numa prateleira
de uma casa que não conheço


* escrito para o quadro de Dod Procter e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Miados

Todas as palavras que leio 
soam a miados
uns mais lentos, suaves,
como quem diz ternura

outros mais acentuados, arranhados,
como quem diz traição

outros mais silenciosos
perfeitos 
como quem diz adeus

* escrito para o quadro de Nicole Wong e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

A morte

Quero só dizer 
que não morri
Tenho apenas um livro novo
para ler
e acho que perdi noção do tempo

 
* escrito para o quadro de JoJo (Joe Christopher) e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Ao pé

Não te distraias
que a chinela cai-te do pé

e pode o coração cair-te com ela
que é onde o coração mora
quando vivemos com os pés
e nos distraímos a ler 

* escrito para o quadro de Penelope Dullaghan e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

De viagem

Há uma princesa num livro de contos
e há sol na minha memória
e há a tua presença tão perto
dos meus pés descalços

Adivinho o teu respirar por entre
o cheiro suave dos brincos de princesa
e sei de cor os sorrisos que já não tenho

* escrito para o quadro de Nathalie Boissonnault e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Depois

Depois das primeiras linhas 
jamais voltará a ver o mundo
com os mesmos olhos

Depois do primeiro beijo
jamais voltará a sentir 
as mesmas borboletas

Depois da primeira morte 
jamais os seus sorrisos
virão do mesmo sítio 

* escrito para o quadro de James Bentley e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Alinho

Uma linha de domingo 
enleia-se no meu olhar
de outono

alinho a ficar entre o linho
há uma almofada e um livro

* escrito para o quadro de Penelope Dullaghan e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Sábado

Chamo-lhe cansaço como lhe podia chamar outra coisa,
chamo-lhe cansaço por estar demasiado cansada
para pensar noutra coisa para lhe chamar,
chamo o cansaço por que não quero chamar a tristeza 
e sei que ela viria, bastava um aceno.

Chamo-lhe cansaço e aceito-o.
Não tenho forças para discutir comigo mesma.




 * escrito para o quadro de Albert Joseph Moore e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Selvagem

Tenho um cavalo selvagem
algures no meu olhar

Não me prendas
não me prendas que te fujo


 * escrito para o quadro da pintora australiana Lori Pensini e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Viajar

Queria um livro 
que me desse o mundo
assim sem mais

e talvez a capacidade de viajar
no tempo



 * escrito para o quadro de Kristyna Litten e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Gato escondido

No jardim, o sol de inverno
mistura-se com os pardais
e há um gato escondido na árvore
lá atrás
abre-se um estore na casa amarela
e um homem passeia um cão e um filho
e outro vai para o trabalho
sem reparar no estore
ou no cão ou no miúdo
ou no outro homem
ou nos pardais

Como daria sequer pelo gato escondido 
na árvore pela minha imaginação?


 * escrito para o quadro de Anna Hymas e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Voos

Pediram-me um pássaro 
e os olhos encheram-se-me de penas
e de páginas
e de pensamentos que podiam
vir dentro de um livro

Abri as asas 
e pousei aqui. 



 * escrito para o quadro de Yoko Tanji e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Inventário

Inventa-me uma rocha alta
acima das nuvens


Inventa-me um tempo recuado
mais de cem anos

Inventa-me um conto curto
menos de seis páginas

Inventa-me um amor perfeito
só eu e tu

e depois deixa-me.
Poucos saberiam viver
dentro deste inventário
e não serás excepção

 * escrito para o quadro de John George Brown e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Nariz de cão

Toda a poesia do mundo se concentra
no nariz de um cão molhado

e não se atrevam a desdizer-me 
que o sei e não foi de ler nos livros
nem de me perder nos prados da imaginação


 * escrito para o quadro de Fiep Westendorp e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Caos e circunstância

Molhada como a alma
que todos os dias nada cem piscinas
nas lágrimas que sobram
dos dias de sol

Iluminada pelos relâmpagos 
Abalada pelos trovões
Apaixonada pela natureza
em caos e circunstância


Vontade de largar o livro 
e ir saltitar nas poças que fez a noite

* escrito para o quadro de David Dunlop e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

Escassez

Hoje não tenho
poesia para ti
há barcos no mar sem peixe
e sombras no chão sem árvores
e sandes despidas de queijo

E a nespereira carregada de fruta
foi trucidada por quem não
distingue o maduro do verde
e há um cão que gane na minha rua
como se lhe tivessem roubado
os sonhos

Não sobra poesia no bolso
onde guardo a vida


 * escrito para o quadro de Paul Honatke e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores. 

O príncipe no colo

Há um príncipe que vai saber ler
como quem ergue castelos
na espuma das ondas
como quem encontra diamantes 
nas corolas das flores dos jardins

Vai saber ler os olhos dos que amam
e as lágrimas dos que partem
Os silêncios dos que ficam 
com bicho carpinteiro nos dedos dos pés
As palavras dos que nelas voam 
sem terem asas

E um dia vai saber ler também o livro 
que ao colo lhe lês agora
nas tardes infindáveis de outono



* escrito para o quadro de Joyce Abbe Fox e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.  

Porque chove

Escrevo o livro com as tuas lágrimas 
junto-as como letras na nuvem da tua página
mais meia dúzia de hieróglifos 
que só o teu coração entende

dizem que é Outono 
sei apenas da saudade

* escrito para o quadro de Eric Drooker e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Cruzamento

Chamam-lhe a vida
quando nos cruzamos assim
e descruzamos em seguida
sabendo de certeza feita
que devíamos ter parado de correr os dias
e caído nestes braços
e lido a meias este mesmo livro

Chamam-lhe a vida
e é a que temos
quando vivemos assim
contra-relógio 

 * escrito para o quadro de Adrian Tomine e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Existência

Há um homem no alto de ti
sentado sobre tudo o que leu

há uma mulher, algures,
talvez encerrada num livro

há uma voz que cheira a papel
e há nuvens que trazem enredos

há figuras de estilo 
embrulhadas para presente 
esquecidas sobre a mesa 
à espera de outro natal  

e há uma história que não contas 
não vá a realidade tecê-la

 
* escrito para o quadro de Eric Drooker e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

O intervalo

Faz-se o intervalo
e descobrem-se nas entrelinhas
as traças que devoram
o que é belo
e o que é importante 
e o que é simples

e deixam apenas os enredos
mais obscuros 
e os mais amargos 
dentre os finais

Nem todos os livros
merecem a capa que envergam



 * escrito para o quadro da pintora Sarah Joncas e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Nudez

Abraço a nudez 
que sinto
ao ler-te 

Sei-me despida de mim


 * escrito para o quadro da pintora Alexandra Muirhead e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Quase ao almoço

Nada alegra tantos os meus dias
quanto não te ter neles
Há um silêncio na casa que me permite ler. 

Mas podes voltar amanhã.
E trazer um livro novo,
que termino este não tarda nada. 


* escrito para o quadro do pintor Tim Ashkar e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.

Na cor

Reconheço a capa do livro
que a tua mão segura

como reconheço a exuberância na decoração
as flores multicores
o fervilhar intenso dos jogos de luz

o teu olhar concentrado
naquelas linhas daquela página
que ainda hás-de citar
de cor




* escrito para o quadro da pintoraLucy Doyle e publicado primeiro na rubrica diária "a-ver-livros" do blog Clube de Leitores.