sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Da memória à dúvida


O resto da chuva da manhã deixou os passeios brilhantes. Uma coisinha de nada, uma nesga de sol, reflectiu por entre os meus passos o que me pareceu uma moeda. Atentei o olhar. Não era.

E dei por mim a pensar: encontrei tantas moedas, até notas, notas de 20 escudos, todas dobradinhas, aí pelas ruas, na minha adolescência. Avistava-as à distância, no chão, e espantava-me com a minha sorte. De há uns dez anos para cá que não me recordo de encontrar uma que seja - excepção feita a duas ou três em casa, durante uma mudança. Estarei mais alta? Com a mente ocupada demais para ver onde piso? Ou andamos todos tão tesos que já nem nos podemos dar ao luxo de perder moeditas pelo caminho para eu as encontrar?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Eu sou da chuva e do vento e da trovoada


Ao chegar a casa, o cheiro intenso a terra molhada a despertar-me a alma. Li na cama até começar de novo a chover. Só depois consegui reconciliar-me com o sono, embalada pela torrente de água que caia dos céus, entre relâmpagos e trovões. Estava plena.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Stand by


Queria apaixonar-me. Queria apaixonar-me de caixão à cova. Queria voltar a sentir as proverbiais borboletas no estômago. Queria a tontura da emoção sem restrições. Queria não pensar, não avaliar, não adivinhar futuros que nunca o serão, não topar à distância erros de casting. Queria sentir-me livre da prisão do bom senso, da noção das distâncias e das diferenças e das impossibilidades.

Queria enganar-me redondamente como já me enganei antes. Queria sentir aquele calor intenso a subir-me a espinha. Queria ignorar todos os sinais de perigo e todos os sentidos únicos. Queria ser tonta e crédula e impulsiva e despojada do sentido de mim para assumir o nós. Mesmo um nós que só existiria deste lado.

E queria sofrer estupidamente como antes sofri. Sofrer até sentir rasgaram-se as paredes do coração cá dentro. Ventrículos e aurículos transformados em ground zero. Sofrer até não saber quem sou nem o que faço aqui. Sofrer até ao limite. Até me lembrar de que estou viva. E que só por estar viva sou capaz de amar assim e sofrer assim.